sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O jardim marinho



Era uma vez um menino que nasceu cego para as coisas da terra. Só via o mar e o que nele havia. Sabia caminhos nas águas, carreirinhos. Dava nome às ondas, de uma em uma. Dizia: a luz nasce do mar e não dos astros. A claridade lhe chegava do azul, ainda molhada e, depois, flutuarejava nos céus.
Andar em terra enjoava-lhe. Tinha temor de pisar em solo firme, de cair no duro chão. Até o verde terrestre lhe incomodava. O menino não sabia tocar as folhagens, ásperas e secas. Plantas, para ele, eram as algas escorregadias e ondulantes.
Quero a minha escola no mar, pai. Em terra não posso.
O pai respondia:
Há-de ser, filho.
A mãe chorava. Como podia ela ter gerado aquele menino, mais a jeito de ser peixe? E a criança, apalpando o escuro, tocava as lágrimas da mãe e acreditava que ela sorria. No seu entender, água seria sempre sinal de felicidade.
A mãe contenta-se. São meus dedos que dizem.
A pobre mulher não respondia. Aquele era seu único filho. Para o sustentar ela tivera que trabalhar na cidade. O dinheiro que o marido retirava das pescarias já não chegava. Nem tão pouco. Os três já eram tantos, mais bocas que braços. Quando ela saía para o trabalho, pelas traseiras da casa, o menino se derramava em total despedida. Como se fosse infinita a estrada.
O pai parecia nem dar conta da estranheza de seu filho. Aceitava. Mesmo decidira puxar a cabana mais para junto da rebentação. Prendas que o miúdo lhe trazia: conchas, búzios, brilhos da maresia.
Será que passa?
Dúvida e angústia da mãe olhando o filho no meio das águas, nadando com despacho de golfinho. Ela sacudia a cabeça, negando-se: em terra o menino não tinha a competência de nem um passo, sequer um. Fora de água, sua visão se apagava. O pai, muitas das vezes, adentrava-se por terra, desafiando o miúdo para vir junto. Mas o filho chorava do escuro onde o mergulhavam.
Com o tempo e como a doença piorasse, a mãe passou a dedicar ódio ao mar. O incansável ruído das ondas já lhe inundava o sono. Ela deixou de dormir, ocupada em sofrer.
Marido, vamos sair daqui. Vamos no interior.
E nosso filho?
Ele se habitua, você vai ver.
Concluía o homem que era impossível, o menino não resistiria. E assim demorou-se o tempo. O menino deu-se de bem crescer, encharcado de azul e sal. Agora, já não era mais criança. Ao fazer do corpo se ajuntava a vontade de ainda mais ser das águas. Um dia, ele:
Devo ir. Eu pertenço lá.
E apontou o oceano. A mãe escondeu dentro um quase alívio. Mas era uma consolação triste, como se fosse o descanso de um parto falecido. Ela já não o ouvia, ele falava qualquer coisa de ser jardineiro, plantar nas ondas.
Não chora, mãe. Eu hei-de passar a visitar.
O pai suspirou um longo silêncio.
Não, filho. Já não vais-nos ver mais. Vou levar tua mãe para longe, ela não pode continuar-se vizinha da água.
Ele dobrou a despedida, perdendo-se no azul inatingível. Os dois velhos ficaram a ver a sua extinção. Quando o Sol ajoelhou a beijar o horizonte, ela pediu ao marido:
Não vamos partir esta noite. Só amanhã.
O pescador, de silêncio, consentiu. Mas, naquela noite, eles não buscaram o aconchego da cabana. Ficaram, sob os ramos da Lua, olhando o escuro abismo por onde o filho desaparecera, ouvindo os seus passos afogando-se na distância.

...................................................................Mia Couto, Cronicando

7 comentários:

Rute disse...

Que lindo , Vítor! A escrita do Mia Coto comove-me, parece "acançonada" e embala o coração porque é muito musical.
Obrigada por este bocadinho que nos deixaste aqui.

1 beijinho :)

Guida Palhota disse...

Todos nós somos crias de alguém que, de um modo ou de muitos, assiste ao nosso afogamento na distância. Porque ninguém é pertença de ninguém, apesar de todos nos sentirmos donos e senhores de todos...

Lady Godiva disse...

Olá, Vítor!

Apraz-me dizer-te que desejo profundamente que os meus filhos sintam um qualquer chamamento claro, forte, definido, como aquele que sentiu este menino pelo mar. E que possam ser livres para o seguirem, pois só vivendo escolhas emanadas de dentro nos poderemos aproximar da felicidade. E é isso que eu quero para os meninos que pus neste mundo, mesmo que, para tal, eu seja obrigada ao sofrimento da separação.

Um sonho, para ti...
de abóbora

Anónimo disse...

Vítor

A foto é linnnnnda!

1 beijinho

Vítor disse...

Rute:

Sempre gostei do Mia Couto, e posso dizer que fui dos primeiros a conhecê-lo. É uma escrita quase fala, que nos leva para um universo que, de tão real, é muito mágico, cheio de vida e de morte, vivida uma e morrida outra com toda a intensidade e com toda a leveza.

Beijo

---//---

Guida:

Eu não o conseguiria (nem sequer me atreveria) a dizê-lo melhor. Concordo contigo em absoluto; acrescento apenas a outra perspectiva, a daqueles de nós que "têm" crias que um dia se vão afogar na distância...

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Lady:

Aquilo que disse aqui atrás à Guida vai um bocado na linha do que tu afirmas.
Mas hás-de reconhecer que não será fácil esse "último" corte do cordão umbilical!

Obrigado pelo sonho
Toma lá uma azevia

---//---

Anónimo:

Não costumo publicar comentários de anónimos.
Apenas o fiz com a intenção de te motivar a identificares-te, desejando-te as boas-vindas.

Retribuo o beijinho, sejas lá quem fores

Rute disse...

Vítor

O anonimato foi por lapso e não propositadamente. Sou eu, a tua amiga Rute. Quando leres "1 beijinho", geralmente sou eu...

1 beijinho ;D

Vítor disse...

Rute:

Sempre resultou a provocação!...

Então, vá lá um beijinho para quem já sei que és